Hospital São Julião

Unidade Cirúrgica

BREVE HISTÓRIA DO
HOSPITAL SÃO JULIÃO

A hanseníase chegou às Américas com os colonizadores europeus no século XVI. No Brasil, os primeiros casos foram notificados ainda em 1600 e se espalharam rapidamente por todo o país. Como não havia tratamento, a única providência era o isolamento dos infectados, fato inútil diante da ausência de ações que enfrentassem o problema. Na província de Mato Grosso, no final do século XVIII, as autoridades foram surpreendidas com a iniciativa de um abastado comerciante que deixava parte de sua herança para a construção de um “lazareto” na cidade de Cuiabá. A obra só foi construída 61 anos depois, em 1816, e recebeu o nome de Real Casa Pia de São João dos Lázaros.

Porém, os poucos “lazaretos” existentes no país mostravam-se ineficazes diante do quadro endêmico que assolava o país. Doentes de lepra eram vistos por toda parte e em diversas situações, muitos mendigando, até que na década de 1930, foi lançado pelo presidente Getúlio Vargas um ambicioso plano de construção de 33 asilos-colônia, um deles em Mato Grosso, na cidade de Campo Grande. Até aquele momento, os locais que abrigavam leprosos eram mantidos pela caridade pública, geralmente grupos de senhoras da sociedade. A falta de medicamentos e de tratamento fez com que o objetivo fosse o de isolar os infectados, o que explica a infraestrutura desses projetos, que lembravam uma pequena cidade. Na verdade, campos de concentração pois quem entrava, dificilmente saía, tanto que as instalações possuíam prisão para infratores e os que tentavam fugir. 

Em de agosto de 1945 foi inaugurado o Sanatório São Julião com a presença do presidente Getúlio Vargas. Nenhum doente foi autorizado a entrar antes, mesmo que já houvesse um número considerável deles acampados nas proximidades, muitos vindos a pé do São João dos Lázaros, numa jornada de três meses, de Cuiabá até Campo Grande. Alguns vinham espontaneamente, na esperança de encontrar a cura. Outros eram trazidos à força, quando denunciados, já que a Saúde possuía poder de polícia. Doentes começaram a vir de todos os lugares, principalmente da parte Norte do estado e até mesmo do Paraguai, uma vez que o São Julião era o único leprosário num raio de mil quilômetros. Nos primeiros anos, a verba federal conseguiu manter o lugar nos padrões inicialmente idealizados, porém a transferência do asilo-colônia para o governo estadual decretou a falência da administração e a ruína da infraestrutura existente.

O resultado foi o gradativo abandono da direção e dos funcionários. A população de 300 doentes foi sendo deixada à própria sorte, em decorrência da falta de assistência médica, de cuidados básicos de enfermagem e de alimentação, cada vez mais escassa e de baixíssima qualidade, além da ausência de manutenção que, deteriorou prédios, rede hidráulica, sanitária e elétrica. Para sobreviver, muitos internos passaram a criar pequenos animais e a plantar o que fosse possível. A promiscuidade instalou-se entre os pacientes, 80% deles homens e 20%, mulheres. Esse número sempre foi uma regra na incidência da doença, detalhe que a medicina tenta explicar. A decadência social foi um terreno fértil para que, a exemplo dos presídios, ali também surgissem facções e milícias alimentadas pela corrupção e pela violência. Apenas um médico permaneceu naquele campo de guerra: dr. Orestes Rocha, primeiro leprólogo de Campo Grande que, tentava manter ali um mínimo de assistência.

Esse foi o cenário que Ir. Silvia Vecellio encontrou quando entrou no São Julião pela primeira vez, em 1964. Na época, ela era professora no Colégio Auxiliadora e, aos domingos, ocupava-se da catequese no Educandário Getúlio Vargas, que funcionava como orfanato para os filhos dos hansenianos. As crianças pediam notícia de pais que não conheciam e, ao tentar dar a elas uma resposta, Ir. Silvia chegou ao destino de sua vocação missionária. Sua aliada nessa aventura era Ir. Maria Ponti. Ir. Silvia reunia donativos com as alunas e, apesar das dificuldades de locomoção e subterfúgios, tentava levá-los aos doentes. Esse trabalho durou cinco anos, permeado por todo tipo de obstáculos e preocupação de sua comunidade, que temia seu contato com um ambiente dominado por uma doença carregada de pavor e preconceitos milenares.

Ir. Silvia constatou a dimensão extrema do cenário em que mergulhara e a certeza de ter encontrado seu campo de trabalho. A partir desse momento teve início para ela uma luta gigantesca com as superioras do colégio e da Inspetoria. Em 1969 um grupo de jovens italianos (a caminho de Corumbá e da Bolívia) passa por Campo Grande e se hospeda no Colégio Auxiliadora. Eles fazem parte de um movimento nascido em Turim chamado Operação Mato Grosso, liderado por D. Ugo De Censi, salesiano. Acompanham o grupo D. Aldo Rabino e Pe. Francesco Caniato. Os voluntários se hospedam no Colégio Auxiliadora e são convidados por Ir. Maria Ponti para conhecerem o leprosário abandonado.

Nesse período Ir. Silvia estava na Itália, depois de 11 anos no Brasil. Lá é desaconselhada pela Madre Geral a prosseguir com o projeto de se dedicar aos hansenianos. Mesmo assim, procura D. Ugo De Censi, que organiza a primeira expedição de trabalho ao São Julião. Ir. Silvia retorna a Campo Grande em maio de 1970, já acompanhada por D. Franco Delpiano. Ainda em São Paulo conseguem o primeiro benfeitor, o empresário Guido Comolatti. Em julho chega o primeiro grupo de voluntários, formado por uma médica, enfermeiros e profissionais diversos. A partir daí é iniciada uma força-tarefa para enfrentar o cenário de guerra que reinava na colônia. Nesse momento, torna-se imprescindível a existência de uma organização da sociedade civil que responda pelas atividades sociais, materiais, jurídicas e financeiras do trabalho que se iniciava. Ir. Silvia e D. Franco saem em campo e reúnem um grupo de pessoas representativas da cidade que fundam a Associação de Auxílio e Recuperação dos Hansenianos, em outubro de 1970.

Porém, antes desta data, D. Franco sente-se mal e os exames diagnosticam uma Leucemia. Diante da comoção de todos, retorna à Itália e de lá, na medida do possível continua acompanhando os trabalhos. Em seu lugar vem Pe. Francesco Caniato e sua presença em Campo Grande aproxima seu irmão, Luca, empresário de Milão, que elabora um grande projeto apresentado à Misereor, na Alemanha. Com os substanciosos recursos e uma boa pressão de Ir. Silvia com o governo do estado para assumir uma contrapartida, foram realizadas as seguintes obras: reforma dos pavilhões, construção de uma Clínica (hoje o Ambulatório) provida de consultórios, sala cirúrgica, gabinete dentário e enfermarias. Também foram construídos uma cozinha e um refeitório. Essas reformas mexeram radicalmente com o tipo de vida instalado na colônia. Não foi fácil e nem do dia para a noite, mas os pacientes, com grande resistência, tiveram que se adaptar a um sistema que desarticulou as facções dominantes, a promiscuidade, a posse de armas, a luta insana contra a bebida e a forma de produzir a própria subsistência.

O cada um por si foi dando lugar a um sistema comunitário e organizado que gerou represálias e fez com que Ir. Silvia fosse jurada de morte e escapasse de tentativas mais de uma vez. Muitos internos, antes ociosos, na medida de suas possibilidades foram se integrando ao trabalho e mostraram-se úteis nas obras de construção civil, na manutenção, na horta e na limpeza externa. Dessa inclusão surgiram personagens emblemáticos, cuja memória se mantém viva até os dias de hoje. Os grupos da Operação Mato Grosso foram se sucedendo, com a presença de profissionais de diversas áreas. O trabalho constante de sensibilização junto ao poder público e a sociedade, através de Ir. Silvia, da Associação e dos voluntários italianos, trouxeram o apoio de significativas parcerias de empresas e entidades do Brasil e da Itália, que deixaram bem visível sua contribuição na doação de medicamentos, materiais de construção e equipamentos. O início de 1972 já apresentava um panorama bem diferente do que existia dois anos atrás. A velha colônia mudava sua face e assumia aspectos de um hospital, com atendimento médico diário prestado por médicos voluntários e por outros, fruto das primeiras parcerias com instituições de saúde municipais e estaduais. Os pacientes passaram a ter acesso a medicação, curativos, pequenas cirurgias e assistência a outras patologias.

A congregação italiana da Divina Vontade enviou um grupo de religiosas: três enfermeiras e uma “faz-tudo”, Ir. Camila, que enfrentou o terreno seco e arenoso e passou a cobrir de verde todo o São Julião, para espanto dos incrédulos. No início de 1972, D. Franco Delpiano obteve uma licença médica e veio a Campo Grande, onde acompanhou a inauguração das novas obras. Depois regressou à Itália, onde faleceu em maio desse mesmo ano. Em seus primeiros sermões, ainda em 1970, afirmava que, se fosse necessário, oferecia sua vida por aquela obra. E assim foi. A união de esforços promoveu também a reforma da rede elétrica, reparos na rede sanitária, a instalação de poços artesianos e ações de sustentabilidade, como o plantio de hortaliças, frutas, a formação de um plantel de gado leiteiro e de suínos. A marcenaria prestou serviços relevantes, com o apoio dos voluntários e contribuiu com obras em todo o hospital. Entre as obras inauguradas em 1972, estava uma escola estadual que também serviu de espaço para a administração. O grande artífice da parte educativa e cultural no São Julião foi Lino Villachá, um paciente que deixou um precioso legado de crônicas, poemas e mensagens reunidas em cinco livros.

Uma figura muito importante no processo de reconstrução da velha colônia foi a do arquiteto Jurandir Nogueira, com a reforma dos pavilhões, a planta da Capela de Santa Isabel e, futuramente, as plantas do Centro Cirúrgico, da nova escola e do Centro de Convenções. O final da década de 1970 trouxe 12 quilômetros de asfalto para dentro do hospital. A reconstrução física deu amparo à reconstrução humana e à qualidade de vida, um capítulo muito importante do trabalho realizado ao longo dos anos no São Julião. A década de 1980 começou a mostrar resultados concretos no tratamento da hanseníase. Pacientes acamados há anos e com graves sequelas foram se levantando dos leitos e encontrando um motivo para continuar a viver. Para motivá-los havia a Laborterapia, para fortalecê-los havia o Centro de Reabilitação, com os setores de Ortopedia e Fisioterapia, importante campo de trabalho para os acadêmicos da UCDB. Para levantar a autoestima havia a possibilidade de cirurgias corretivas. Para promover a integração social havia a escola, o futebol e as festas memoráveis que ficaram na história do São Julião daquela época. E, para alimentar a alma, sempre houve a presença da assistência religiosa.

Um ponto de destaque na história do São Julião está ligado a seu quadro de funcionários. Os primeiros vieram para atender a uma vocação que, talvez nem eles mesmos soubessem identificar, porque a doença inspirava pavor e pouquíssimas pessoas tinham coragem de se aproximar. Por isso, era até providencial que esposas e filhos se integrassem a um trabalho totalmente insalubre. O que hoje é erroneamente chamado de nepotismo, foi nos primeiros tempos atos de heroísmo, quando cada um fazia o trabalho de três num quadro reduzidíssimo de colaboradores. Outro ponto crucial, que moldou a personalidade do trabalho, foi o espírito humanista que sempre fez parte de todas as atividades realizadas. O Hospital São Julião renasceu amparado pela causa do voluntariado, da solidariedade e do desenvolvimento da pessoa humana de forma integral, atitudes impressas e expressas no comportamento de seus atendentes, de qualquer grau ou função e totalmente avessas ao mercantilismo que permeia a área da saúde. Esse comportamento já se tornou marca reconhecida e não há motivos para que esses princípios sejam abandonados.

Fenegró

A década de 1980 evidenciou parcerias do São Julião com outras instituições, a exemplo da Universidade Federal de MS, quando dr. Gunter Hans começou a levar seus alunos de Medicina para estágios em Dermatologia. Tempos depois assumiu a direção clínica, à qual dedicou-se por 15 anos consecutivos deixando um legado precioso de desenvolvimento na área médica. A parceria com o Instituto Lauro de Souza Lima, de Bauru (antiga colônia Aymorés) por meio do eminente dr. Opromolla, representante brasileiro na OMS, trouxe expressivos benefícios na área de Reabilitação. A sapataria do sr. João revolucionou o trânsito dos pedestres, fazendo com que muitos pacientes vencessem graves sequelas e recuperassem o direito de ir e vir. 

Também foi nos anos 1980 que o São Julião, já estruturado material e administrativamente estendeu seu trabalho para além de suas fronteiras em duas direções: dos migrantes e das crianças abandonadas. As atividades com os migrantes começaram com a distribuição diária de uma sopa, na calçada de uma casa municipal de acolhimento à população de rua. Impedidos de servir a sopa dentro do prédio, após cinco anos, a Associação e os voluntários construíram próximo dali o Centro de Apoio ao Migrante, com estrutura para acolhida, assistência, encaminhamento de emprego e alimentação. A Casa da Vovó Túlia, em convênio com os meios jurídicos, desenvolveu ao longo de 25 anos o trabalho de acolhida e encaminhamento de crianças de zero a seis anos, em situação de vulnerabilidade, para adoção.

A década de 1990 evidenciou a abertura do São Julião para o intercâmbio científico, decorrente do amadurecimento da assistência médica relacionada à hanseníase em seus diversos aspectos, aos resultados obtidos a partir de 1970, às perspectivas apresentadas pela medicina para o tratamento da doença e especialidades emergentes. Esse novo momento na trajetória do hospital foi marcado pela visita de São João Paulo II, em outubro de 1991. A presença do Papa conferiu visibilidade ao São Julião e chamou a atenção do mundo para a causa da hanseníase, ainda em situação endêmica no Brasil e à necessidade de um olhar mais objetivo a essa realidade. Em 1993 foi inaugurado o Centro Cirúrgico Francesco Caniato e em 1995, a moderna Escola Padre Franco Delpiano que atende do primeiro ao nono ano, alunos de toda a região. Em 1997 o São Julião consolida sua vocação científica dando início ao projeto OMNIA, realizando congressos internacionais em convênio com a Università Degli Studi di Torino, a Universidade Federal de MS e o Instituto Lauro de Souza Lima, de Bauru. Vale citar que este e o São Julião foram as únicas, das 33 colônias, que se reinventaram, evoluíram, ampliaram seus objetivos e permanecem prestando relevantes serviços ao país.

Os anos 2000 foram marcados por um progressivo aprimoramento de todos os setores, dentro e fora do hospital. Em 2001 foi inaugurado o Centro de Convenções Dr. Gunter Hans, obra que veio coroar o desenvolvimento humano, social e científico do São Julião, com a continuidade dos congressos do OMNIA. Em 2004 foi construído o Pavilhão Fenegrò, que deve esse nome aos benfeitores da cidade natal do Pe. José Marinoni. Essa nova unidade é destinada ao tratamento de doenças infectocontagiosas, a exemplo da AIDS, tuberculose e hanseníase. O ano de 2012 foi marcado pela inauguração do Centro Oftalmológico Elena Brach Del Prever, considerado hoje, de excelência em todo o estado. Também nesse ano foi inaugurada a Arena do Encontro, moderno centro esportivo que veio atender os alunos da escola e a comunidade do entorno, graças ao projeto de basquete desenvolvido por Bruno Gontero e a nova geração de voluntários da Operação Mato Grosso. Em 2013 são acrescentadas duas salas operatórias ao Centro Cirúrgico, com o apoio da empresa Tortuga, que antes já havia financiado a instalação do centro radiológico. Também foram acrescentados ao atendimento do hospital o CCI, um sistema de cuidados continuados intensivos, em convênio com o governo federal.

Desde que a Associação e os voluntários da Operação Mato Grosso iniciaram juntos o grande projeto de revitalização da velha colônia abandonada, não houve um momento sequer que não tenha sido dedicado à manutenção dessa obra, ao acompanhamento acurado do tempo presente, a um olhar ousado e corajoso para o futuro e para a valorização da história vivida pelos personagens que passaram por esse hospital: dos pacientes aos médicos, enfermeiros, auxiliares, voluntários leigos e religiosos, aos membros da Associação e aos benfeitores, colaboradores ocasionais e permanentes. Todos fazem parte dessa história.

Este é apenas o resumo de uma trajetória de 80 anos que está reunindo seus inúmeros registros em um livro para ser lançado no ano de 2023.

Lenilde Ramos
Jornalista presente no Hospital São Julião desde 1970
e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras